(O Estado de São Paulo - Quinta-feira, 18 de janeiro de 2001 - Caderno 2)
MAURO DIAS
No outro sábado, publiquei entrevista com Sérgio Magalhães Jaguaribe, mais
conhecido como Jaguar, o grande chargista que acaba de escrever dois livros
de memórias: um sobre Ipanema, que se chama mesmo Ipanema, já nas lojas, e
outro sobre os bares em que bebeu, pronto, mas ainda não lançado. O título é
Confesso Que Bebi. Jaguar diz que está plagiando Pablo Neruda e seu Confesso
Que Vivi.
Ainda não li as confissões etílicas de Jaguar, mas sou mais elas do que as
existenciais e políticas do poeta. Aposto, no escuro, que trarão mais
diversão. E informações úteis - trata-se, afinal, de um guia de bares do
Brasil inteiro, os que autor freqüentou ao longo de uma vida dedicada à
arqueologia botequínica.
Para entrevistá-lo, marcamos encontro no Pirajá, cognominado Esquina
Carioca, questão de coerência. Era o dia seguinte ao da noite de autógrafos
de Ipanema, o livro. Horário: uma da tarde. Comecei a duvidar. Eu sempre
acreditei na existência física de Jaguar, mas só depois do sol se pôr.
Quanto mais depois de noite de autógrafos realizada num botequim.
Paguei vergonha pela incredulidade. Uma tarde de sol quente, sem vento
(depois caiu um baita temporal) e cheguei na hora - o cara já estava lá, em
carne e osso e camisa de manga comprida. O dono do boteco ofereceu o chope
de direito, para aquiescência geral, outra questão de ser coerente.
Conversa vai, chope vem, começou-se a falar dos grandes mistérios
birosqueiros. Jaguar sacou o seu, que é de todos os tempos, desde que bar é
bar: quem, neste raio de mundo, bebe Underberg - além dele próprio? "Todo
bar que se preza tem uma garrafa de Underberg, pela metade, na prateleira",
sustentava o ilustre. "Mas você jamais viu alguém chegar ao balcão e pedir
um Underberg?"
O peso da verdade calou por instantes a mesa. "Quanto a mim, tudo bem",
disse Jaguar. "Só entro em botequim que tenha Underberg, mas não conheço os
companheiros de hábito", admitiu. Terrível mistério, caríssimo leitor.
Imagine o número de cidades que tem nosso torrão natal. Imagine o número de
esquinas de cada cidade. Em cada esquina, um botequim. Em cada botequim, uma
garrafa de Underberg pela metade. Por mais que Jaguar seja ubíquo, jamais
conseguiria provar de todos os litros de todas as prateleiras de todas as
esquinas de todas as cidades de todo o País.
Sem falar no caráter exportável da veneranda bebida, fabricada no Brasil, de
propriedade de uma alemã (ou seria escandinava, ou eslovaca?) imigrada, que
mora (ou morava, não sei se ainda está viva) em Petrópolis (seria
Teresópolis? Já tínhamos algumas horas de papo, e chope, quando chegamos a
esse pedaço).
Sentimentalmente, Jaguar lembrou-se de que, há alguns anos, pediu em
casamento a condessa (marquesa?) de Underberg. Telefonou (telegrafou?
pombo-correiou?) fazendo a proposta. Alguns dias depois - é, acho que ele
escreveu - recebeu carta delicada, declinando da honraria. Em anexo
(atachada?) uma caixa com litros e litros do digestivo escuro, amargo e,
vê-se, misterioso.
O garçom ouvia, atento, a conversa. Quando se deu novo silêncio - na hora em
que chegaram os pastéis -, apresentou sua colaboração, em forma de dúvida,
espanto, incredulidade: "E licor de ovo, doutor, o senhor já viu alguém
beber licor de ovo?" Pausa reflexiva. "Trabalho em botequim há trinta anos e
nunca servi licor de ovo. Pois bem, todo bar tem uma garrafa de licor de ovo
pela metade, na prateleira. Aqui mesmo tem uma. Eu estou no bar desde a
fundação. Quando vim para cá, a garrafa estava cheia. Agora, está pela
metade. Eu não servi. Perguntei aos outros garçons, ao dono, aos copeiros,
aos cozinheiros, ninguém serviu. Ninguém bebeu. E está pela metade."
Correu a mesa um frisson reflexivo, talvez místico, e seu peso inibiu a
conversa. Saímos para a chuva de verão, que não nos lavou as dúvidas, o
susto. Em casa, à noite, tive pesadelos. Entrava num bar estranho, numa
cidade estranha. Um escritor francês sentava-se ao meu lado. O garçom
perguntava: "Quem bebeu o Underberg? Quem bebeu o licor de ovo?" O escritor
francês me apontava o dedo e dizia: "Eu acuso!" Lembro-me vagamente do nó da
corda em meu pescoço.